sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Como uma nuvem

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mão quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos...)
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) - nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...


José Gomes Ferreira

8 comentários:

  1. Absolutamente magistral! Que lindo! Devia ser tal qual ele diz, era tudo muito mais etéreo e doce, desaparecer assim numa nuvem levada e desfeita pelo vento.
    Abraço. :)

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    1. :) Também acho! Uma metamorfose em nuvem. Adoro este poema, sobretudo no fim. :)
      Para o que me dá quase às 4 da manhã lool.

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  2. É dos mais conhecidos dele. :) Adoro e concordo integralmente. A despedida da vida deveria ser assim, leve e indolor. Fácil.

    Às vezes a morte chega cedo demais; outras vezes massacra lentamente...

    abraço.

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    1. É lindíssimo. :)
      E é verdade, Mark de Jesus... Já assisti a cada coisa. Nem é bom lembrar.

      Abraço! :D

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  3. Este tema é sempre controverso...mas a forma como ele é descrito aqui, é sem dúvida maravilhoso!

    Abraço amigo :3

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    1. É verdade. :) Acho o poema simplesmente encantador. :)
      Abraço, João :3

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  4. morte divina. um rasto de fumo e lá íamos, levados pelo vento.

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